quinta-feira, 7 de junho de 2012

19. Sociedade escravagista

19.1. A escravidão negra
O Brasil, país essencialmente agrário, tinha na mão de obra escrava a grandeza de sua economia, tanto que foi um dos últimos americanos a abolir a escravidão negra.
Os fazendeiros santa-cruzenses possuíam escravos, em maior ou menor número, conforme as posses. Joaquim Manoel de Andrade mantinha grande plantel de escravos, da mesma maneira que Francisco Ignácio Borges – um dos pioneiros presbiterianos, e outros grandes nomes.
O padre e fazendeiro João Domingos Figueira era escravagista e teve, pelo menos, uma filha nascida de escrava. A favor dos escravos, portanto, não se podiam esperar ações da sociedade e nem das Igrejas representadas – católica e presbiteriana.
As numerações aos negros, constantes dos registros em Botucatu e Santa Cruz do Pardo, revelam aumento da população, entre os anos de 1873 a 1880, em consequência à chegada de famílias brancas abastadas na região, e depois disso cessaram os registros de entradas de escravos no Vale Paranapanema.
A taxação sobre transações de escravos era bastante cara e, além disso, o proprietário tinha que pagar o imposto anual sobre peças possuídas, conforme eram chamados os negros nos mercados em transações livres, ajustes particulares e leilões públicos.
As transações eram tais quais mercadorias e animais. O escravo Marcelino, 17 anos, negro, de propriedade de Marcellino Alves de Lara, foi adquirido por Bernardino José de Andrade, ambos residentes em Santa Cruz do Rio Pardo, com escritura lavrada em cartório pelo Tabelião José Manoel de Almeida, aos 19 de setembro de 1882, com os testemunhos de Raphael Silvério de Andrade e Joaquim Manoel de Andrade, após recolhimento das taxas junto à coletoria de Lençóis Paulista (Apud Junqueira, 2006: 52).
Então os negros eram contrabandeados, mesmo que oficialmente o motivo de cessação de entradas de escravos negros no território paulista ocorria por ausência de interessados.
Os fazendeiros temiam comprá-los por altos preços e, de repente, ver triunfar o movimento abolicionista com prejuízo certo a qualquer momento.
Outro motivo de cessação de entrada de escravos negros estava no uso da mão de obra indígena; os índios aldeados supriam bem os escravos negros e a menores custos.
Da mesma forma, desde 28 de setembro de 1871, pela Lei Imperial nº 2.040 – a chamada lei do ventre livre, a escravatura negra estava com os dias contados. Seria questão de tempo, ainda que longa agonia e sofrimento, mas o fim da escravidão estava decretado.
A Lei do Ventre Livre também fazia cessar práticas hediondas, que consistiam obrigar mulheres negras manterem relações sexuais com negros especialmente escolhidos como reprodutores.
A Lei 2.040, no entanto, não tratava apenas do ventre livre e dos cuidados do governo com os nascidos livres – artigos 1º e 2º. Com certa atenção se pode verificar que o artigo 3º podia trazer a libertação antecipada do escravo.
Embasado neste artigo terceiro, o Governo Imperial criou o 'Fundo de Emancipação da Mão de Obra Escrava', aplicada e acrescida de valores pelos Governos das Províncias.
Santa Cruz do Rio Pardo fez sua adesão a referido Fundo, em 1878, com plano de libertação de 236 [duzentos e trinta e seis] escravos matriculados que seriam libertos, gradativamente, mediante reembolso aos senhores escravagistas, através do município, em cotas anuais (RG, U 1113, 1882/1883: 24 e 26).
Apesar do recebimento da quarta cota do Fundo de Emancipação da Mão de Obra Escrava em 1882, Santa Cruz não registrara, ainda, a libertação de nenhum escravo, consoante documento oficial, com justificativa quanto a aplicação apenas da primeira cota e que as demais seriam lançadas conjuntamente em razão dos baixos valores do referido fundo.
Os fazendeiros relutavam libertar seus escravos, procurando lacunas legais ou o uso de contratos rigorosos. Não obstante elevou-se para 253 o número de escravos matriculados em Santa Cruz do Rio Pardo. 
Santa Cruz, para 1886, a considerar o recebimento de recursos financeiros do Império e da Província para libertação de escravos, e não o tendo feito, teve anunciado vistoria, por junta nomeada, para verificação e classificação de escravos efetivamente matriculados no município.
O governo municipal, apesar do recebimento financeiro para emancipação da mão de obra escrava, teve declarado apenas 1 escravo livre, mas o número de escravos inscritos no programa caiu de 253 para 243, em causa dos libertos pela Lei dos Sexagenários, com direitos já assegurados, todavia ainda explorados como mão de obra gratuita (RG, BN 1031, 1886/1887: 37-43).
A libertação de escravos sexagenários nem sempre ocorria, mais em razão de pedido do próprio beneficiado, pela idade avançada e sem condições de sobrevivência independente.
Da mesma maneira as próprias entidades envolvidas na libertação da escravatura não estavam preparadas para albergar velhos libertos e nem tinham interesses naqueles considerados improdutivos.
Os fazendeiros, através do município, mantinham a justificativa que o ressarcimento pela libertação de um escravo não era compensador para o proprietário individualizado.
O escravo negro custava caro. Donato cita exemplos de transações no Mercado Nacional de Botucatu: "João por dois contos de réis, Joana por um conto e 200, Elizário por quatrocentos, Maria por 700." (...). "A crioula Carolina, cor fula, de oito para dez anos de idade, que ouve por arrematação que fez em hasta pública nesta Vila', ao preço de 500 mil réis." (1985: 11). 
O Governo Provincial confirma Santa Cruz com 306 escravos matriculados de acordo com o Regulamento de 14 de novembro de 1885, no valor de 121:075$000 (RG, BN 1032, 1887/1888: 19 – 5º Distrito), valor médio de 702$615 cada 'peça' ou escravo a ser libertado.
Registro oficial revela, ainda para o ano de 1887, a libertação de 100 escravos, em Santa Cruz, pelo Fundo de Emancipação, acrescidos de 1 sexagenário liberto e 3 óbitos. Os demais seriam livres a seguir, ainda antes da abolição (RG, U 1140, 1887/1888: 28). 
Nestes considerandos nenhum escravagista regional teve prejuízos com a Lei Áurea, nem a escravidão local encerrou-se com o ato abolicionista, diante de artifício, senão legal ao menos permitido, que fez lucrar ainda mais todos os donos de plantéis.
Ocorria que desde 1881 todos senhores de escravos negros, no Vale do Paranapanema, sabiam prestes a abolição, por isso concediam-lhes a liberdade, através de escritura lavrada em Cartório, na qual o liberto comprometia-se prestar serviços gratuitos ao ex-dono, durante determinado tempo, a título de reparação, indenização ou alforria, sendo muitos documentos sem datas e assinaturas, ou nem preenchidos, para uso posterior em caso de necessidade.
Segundo Leoni, tal feito tratava-se de evidente estratagema, posto escrituras lavradas "com datas atrasadas, com poucos dias de antecedência ao decreto, diferenciando algumas de prazo maior, outras de menor prazo, mas se vê que tudo era a mesma coisa." (1979: 298-300).
Acontecia de alguma maneira, escravo adquirir a liberdade, por meios próprios, por auxílio de Irmandade. O negro podia ingressar com processo de libertação – pelo fundo de emancipação, pela compra particular da liberdade ou através da Irmandade, mas o processo podia ser contestado pelo patrão e isto demorava anos, e durante a tramitação processual, quase sempre o negro ainda estava sujeito ao 'Jugo do Cativeiro', bastando denunciá-los arruaceiros ou não adaptados para a vida em sociedade, e retornavam aos antigos patrões.
Armavam-se situações para pender negros libertos, que assim voltavam ao cativeiro, sob a justificativa de não adaptação social, ou procedimentos incompatíveis com a vida em liberdade.
Na Paróquia de Santa Cruz cinco libertos foram ilegalmente detidos por ordem do Delegado de Polícia em exercício, Manoel Luiz de Souza, e devolvidos ao antigo senhor, "para serem entregues ao jugo do captiveiro. (...). Os agentes, – capangas, secretamente provocaram a prisão dos infelizes – que a todo transe pretendem amarrar, para merecerem as graças do dignissimo delegado escravocrata; e o conseguirão certamente visto a boa vontade com que encetaram a campanha." (Correio Paulistano, 04/01/1884: 2). 
Leoni descreve sobre uma escritura pública, lavrada e registrada em Campos Novos Paulista aos 06 de abril de 1888, em que o fazendeiro santa-cruzense João Marques da Silva concede liberdade à escrava Victória, matriculada na Coletoria de Santa Cruz do Rio Pardo, sob a condição dela prestar-lhe serviço gratuito pelo prazo de um ano, conforme documento fac-similado apresentado pelo autor (1979: 365). Para a escrava, livre por documento oficial de 06 de abril de 1888, a escravatura terminou, na realidade, em 1889.
Certos contratos consideravam o escravo ter recebido antes determinado valor pela sua liberdade, ou seja, o período que o patrão lhe cuidou, seu preço de compra, os gastos com alimentações, vestuários, medicações e prejuízos causados, morte provocada ou não de algum animal, dias parados por quaisquer motivos, quebras de equipamentos ou maquinários, entre outras ocorrências, daí o serviço gratuito em retribuição.
Quando do vencimento do prazo contratual, se anterior a edição da lei de libertação, renovava-se o período sob qualquer pretexto ou exigência patronal.
Apesar das peculiaridades locais, não se pode pretender que o regime de escravidão negra em Santa Cruz do Rio Pardo tenha sido diferente das demais regiões, em especial, na província de São Paulo.
Assim, assevera-se que os negros escravos santa-cruzenses também foram protagonistas de rebeliões, fugas, crimes e mesmo formações de quilombos, de onde partiriam suas resistências contra a escravidão, através de assassinatos de preadores e colaboracionistas, fossem para promoções de fugas.
Santa Cruz teve Irmandade do Rosário, formada de homens negros – escravos ou forros, inclusive com uma praça no o Largo do Rosário, para suas reuniões e festejo. A confraria também era conhecida por Irmandade de São Benedito dos Homens Pretos.
Os associados tinham liberdades de ações limitadas pelo Clero, com objetivos sociais de libertação pacífica de escravos negros mediante compra – alforria, troca por outro cativo ou a coarctação negociada, contudo nenhum registro conhecido chegou até aos dias atuais.
Para esta ausência de documentos culpam-se as famílias escravocratas, com ações próprias ou através dos descendentes. A primeira geração pós-abolição sentia-se constrangida com a realidade e procurou apagá-la da memória doméstica.
Portanto nada fácil juntar os retalhos para se reconstituir traços de uma cultura que a Igreja fez arrasar, e as famílias questão em apagar, mas em Santa Cruz do Rio Pardo os negros, escravos e forros, vindos de Minas Gerais nos primeiros tempos da formação regional, congregavam a Confraria do Rosário, porque outra razão não teria destinar-lhes a Igreja, documentalmente, um lugar denominado Largo do Rosário, para as suas reuniões e folguedos.
Ali os 'homens de cor' se confraternizavam sob a proteção da Irmandade de São Benedito. A praça, oficialmente, passou a se chamar Praça Coronel Marcello Gonçalves de Oliveira, a partir de 1893, hoje Otaviano Botelho de Souza, mas consagrada como Largo de São Benedito.
Em verdade, a festa era momento único para os negros sentirem o sabor da liberdade, transgredindo normas e preceitos difundidos pelo Estado e pela Igreja Católica. Enquanto a Igreja pregava a libertação da alma, a irmandade estava mais preocupada em romper os grilhões que acorrentavam corpos de um povo, considerado inferior pelo simples fato de ter a cor da pele e a cultura diferentes da raça dominante.
Sem dúvidas ocorreram conflitos. No Vale do Paranapanema, onde os patrões e senhores usavam de engodos para a continuidade cativa de seus escravos libertos pelo Fundo de Emancipação, ocorreram sem dúvidas, confrontações entre a confraria e os escravistas.
As tradições indicam revoltas de escravos e ex-escravos em Santa Cruz do Rio Pardo e região. Pós-libertação e esgotados os compromissos de alguns cativos, uns e outros negros, através da confraria, procuraram por Quilombos ou Comunidades Negras onde o trabalho por conta própria; outros, no entanto, permaneceram trabalhadores da terra – mão de obra remunerada, à vezes no próprio local onde foram escravos.
Certamente os idealistas pensaram fácil a abolição da escravatura, não contando que os negros não sabiam outra vida de trabalho que não a servidão imposta e forte, por isso quando livres todos se tornaram indolentes e trabalhadores ineficientes, entregando-se rápidos a uma vida dissoluta e de fanfarrices, porque era assim que entendiam a vida livre que seus antepassa-dos não tiveram e de repente lhes foi ofertada.
Num primeiro momento, pós a libertação ou desvinculados de contratos, a maioria dos negros libertos buscou centros maiores para se empregar, com isso a quebrar um período da transição necessária entre os negros e a chegada dos imigrantes, a gerar consequentemente clima de pessimismo e caos econômico no sertão.
Desconhecendo as regras e o preço exigido para a liberdade, os negros que se fizeram urbanos foram repelidos para as periferias, formando os primeiros bolsões de miséria.
A abolição representou para os negros e mestiços cativos o ato redentor de juridicidade governamental, mas não sua emancipação civil, política e econômica, mantendo-os segregados sociais, dependentes de subempregos, incapazes de algum movimento que os tornasse iguais ou competidores com a mão de obra dos imigrantes europeus e asiáticos.
A confraria representante da comunidade negra, em Santa Cruz, efetivamente encerrou atividades, conforme seus princípios originais. Subsistiu por alguns anos após a abolição, e depois se transformou numa associação exclusivamente religiosa voltada ao catolicismo.

19.2. Escravatura indígena 
A despeito das libertações das escravaturas no Brasil, primeiro a indígena, definitivamente desde 17 de outubro de 1831, depois a negra aos 13 de maio de 1888, isto não impediu a mobilização do índio para trabalho obrigacional gratuito, no Sertão Paranapanema, até os primeiros anos do século XX.
Para burlar a legislação quanto à continuidade da escravidão indígena, os fazendeiros valiam-se das admissibilidades legais, através de aldeamentos particulares, declarando os índios que viviam pacificamente em suas terras onde recebiam a cristianização, além da moradia, alimentação e proteções contra inimigos.
Os fazendeiros podiam, também, requisitar mão de obra indígena diretamente dos aldeamentos oficiais, como contribuição na socialização e educação do índio, através do trabalho, para sua inserção social, tornando-o útil à sociedade.
Existiam outros meios permitidos para o uso do índio para o trabalho obrigacional gratuito, sem declará-los oficialmente escravos, por exemplo, aprisionando-os como medida de segurança, impedindo índios errantes na região que podiam colocar em risco a vida das pessoas brancas, ou causas de danos nas propriedades.
Tais atitudes eram tidas como medidas protecionistas, para com isso obter do índio a retribuição legalmente admitida, ou seja, o trabalho obrigacional gratuito; não sendo, portanto, oficialmente escravos. O Censo de 1872 revela índios, ou caboclos, contados com a população [livre] santa-cruzense.
Os senhores escravagistas podiam dispor dos indígenas como objetos de permutas, compras e vendas. Em 31 de setembro de 1885, o policial José Sebastião vendeu a índia Maria ao João Antonio Molitor, Comandante do Destacamento de Santa Cruz do Rio Pardo (Correio Paulistano, 16/09/1885: 2).
Desta maneira, a escravidão indígena era tolerada, ainda em 1900, em todo centro sudoeste paulista, inclusa a região de Santa Cruz, sabendo-se de índios nestas condições residentes na Fazenda Perobas.
Os mestiços, índios e brancos ou índios e negros, também eram escravos, ou submetidos a tal regime, embora pais brancos – quando senhores de posição, evitavam esta situação para filhos mamalucos, à mesma maneira que faziam com os filhos mulatos – de mães negras, enviando-os às localidades maiores, para estudos ou simplesmente torná-los ausentes.
Sob todos os aspectos, a mão de obra indígena era barata, sem custos com alimentação, remédios, vestimentas, bastando lhes dar espaço de terra para a aldeia e pequenos roçados, cuidados pelas mulheres, pelos velhos e crianças, também responsáveis pela coleta extrativista enquanto os adultos trabalhavam para os brancos. É certo que o índio perdia sua condição seminômade, mas lhes era preferível tal subjugação que os riscos de enfrentamentos com os brancos, ou obrigados a fugas constantes.
A lei facultava. Os fazendeiros utilizavam a Carta Régia de 1808 como supedâneo ao 'Aviso de 14 de fevereiro de 1855', qual seja, para as autoridades se limitarem a proteger a população branca contra ameaças indígenas, com emprego da força somente nos casos de absoluta necessidade. Qualquer sentimento de ameaça bastava para a pronta ação de aprisionamento ou morte do índio.
Em diversas regiões e ocasiões foi este o argumento utilizado. "O municipio de Santa Cruz do Rio Pardo, que já este anno foi theatro das correrias de indios bravios, acaba de ser invadida por um bando d’esses selvagens, que immolaram em cruel hecatombe 14 vidas, estragando plantações e gado!" (RG, BMIP 1022, 1878/1878: 58).
Foi o revide indígena contra a família e agregados do bugreiro José Theodoro de Souza Junior, filho do pioneiro mor, na região atual de Paraguaçu Paulista.
Os moradores insistiam em denúncias ecoadas no Governo: "Este anno [1878] os índios de Campos-Novos, por três vezes, atacaram trabalhadores e proprietários do município de Santa Cruz do Rio Pardo" num assunto prosseguinte "Os índios de Campos-Novos, consta-me que já conhecem e fallam o nosso idioma; e accossados como vivem por algumas raças selvagens e inimigas, com muito pouco esforço são capazes de estabelecer relações que os tirem d’aquella vida nômade, augmentando a prosperidade do lugar."
Tratava-se grupo Xavante que, fugindo do Caingangue perambulavam pelos povoados, praticando furtos de pequenas montas e estragando plantações nas suas passagens.
O Governo incentivava: "Considero indispensavel, sob um duplo ponto de vista, ensaiar algumas providencias para attrahir os índios mansos que erram n’aquellas regiões; e, na proximidade em que elles se acham dos povoados, e so converter em aldeamentos regulares os campos em que elles se convervam sem aproveitar as forças da natureza. (...). A civilização offerece meios e torna obrigatória a conquista desses habitantes do deserto." (RG, BMIP 1022, 1878/1878: A 15-16 - Incursão de Índios).
Os aldeamentos regionais já existiam e neles a presença da Igreja, desde o Regulamento das Missões em 1845, responsável pela catequese e civilização dos índios, além de sua transformação em mão de obra livre a ser usada pelos proprietários de terras.
Do ponto de vista da Igreja, oficialmente, nas fazendas os índios recebiam em troca dos serviços a alimentação, o pouso e a segurança contra inimigos, além da educação cristã e do aprendizado trabalhista, como forma despretensiosa do branco colaborar na manutenção do aldeamento. Por seu turno, os fazendeiros preferiam índios catequizados que o selvagem, como mão de obra, indo buscá-los nos aldeamentos, já domesticados e preparados para o servilismo.
Questiona-se o papel da participação ou não da Igreja na escravização indígena, assunto polêmico e sempre tratado de maneira secundária, mas evidente que jamais a Igreja utilizou toda sua importância e força para que a escravatura fosse proibida; nem a indígena, nem a negra.
A Igreja entendia e justificava a escravidão indígena por passagem necessária à libertação e salvação da sua alma, vez que o índio possuía apenas vestígios de humanidade, lascivos e mais próximos às bestialidades pelas práticas anticristãs, ou melhor, pelas práticas condenadas pela Santa Sé, tais como sodomias, incestos, prostituição, de canibalismo e sacrifícios humanos, como ações demoníacas.
Às vezes até se pode ver o Clero por inspirador escravocrata, nos relacionamentos entre os fazendeiros e padres, em busca de fórmulas alternativas, como a utilização do trabalho compulsório gratuito de comunidades indígenas, obviamente para aquela mesma eficácia espiritual de salvação.
No ano de 1857, referindo-se ao exercício anterior, o Governo de São Paulo informou que "Em officio de 30 de Maio do mesmo anno, o Padre Tristão Carneiro de Mendonça, representou à Presidencia, expondo diversos actos de violencias praticadas contra os indígenas de Baurú e Paranapanema. Ouvindo immediatamente o dito Director Geral, informou-me elle que taes violencias se não davão, negando a exactidão das informações prestadas por aquelle Sacerdote." (RG, U 1090, 1856/1857, p.11-12).
Mais tarde comprovado, os fatos ocorreram.
Na região contaram-se diversos aldeamentos. São João Batista do Rio Verde [futura Itaporanga] – desde 1845, o de São Sebastião do Tijuco Preto [onde atual Piraju] datado de 1854, o de Salto Grande instituído em 1862.
Também contavam aqueles no lado paranaense, que atendiam fazendeiros paulistas, necessitados de mão de obra indígena, sendo eles: São Pedro de Alcântara [de 1855] levantado à margem do rio Tibagi, onde a atual localidade de Jataizinho, e o São Jerônimo da Serra, em lugar de igual nome, criado em 1859, situado no rio Tigre, afluente do Tibagi.
Ainda assim faltavam índios para o trabalho e se pensava em novos aldeamentos, porque grupos indígenas perambulavam pela região, ao lado de bravios, alem das censuradas atitudes de alguns padres com aldeamento aberto, no lado paranaense, onde os indígenas entravam e saíam livremente. Na visão dos fazendeiros, os índios aprontavam e se colocavam a salvo no aldeamento franqueado.
A sugestão era forçar o governo abrir novos aldeamentos, alertando o governo dos perigos que os índios causavam. Com esse fim, o Juiz de Paz de Santa Cruz do Rio Pardo denunciou presenças de índios nas matas do Alambari, Pardo e Turvo, como sérias ameaças aos fazendeiros e residentes. A autoridade sugere um aldeamento na região de Bauru.
O Juiz Municipal, Antonio José da Rocha, confirmava e comunicava essa perigosa presença indígena em Santa Cruz do Rio Pardo, e requeria providências do Governo da Província junto à Diretoria Geral do Índio, recomendando aldeamento no próprio termo.
O Correio Paulistano, em edição de 20 de março de 1882, publicou na íntegra o discurso do Deputado Emygdio José da Piedade, da tribuna da Assembleia Provincial, aos 23 de fevereiro de 1882, ao justificar urgência na aprovação do Projeto Lei nº 146/1880, de sua autoria, sobre dois aldeamentos de catequese indígena na Comarca de Lençóis Paulista, justificados pelos problemas causados pelos índios "mais selvagens como os coroados e outras tribos ferozes (...). Dahy tem resultado grandes prejuizos aos moradores, que muitas vezes são victimas, e represalias d'estes contra aquelles, ceifando viddas que poderiam ser aproveitadas."
Os aldeamentos serviriam para os índios: "Elles serão chamados ao estado de sociedade, poderá prestar bons serviços e servirão de guarda á população contra a incursão dos habitantes bra-vios d'aquelle desconhecido sertão, que fazem estragos com a menor resistencia."
A exposição de Emygdio era convincente: "Resido em Santa Cruz do Rio Pardo à cerca de 6 anos. Durante o periodo, á excepção do anno passado, foram victimas muitas pessoas. Em 1880, de uma só ves assaltaram a lavoura de um daquelles moradores e mataram uma familia composta de 15 pessoas. Pouco depois assaltaram outro roçado e mataram 9 pessoas, e assim em diferentes tempos e lugares, fizeram sempre grande numero de victimas."
O Deputado não mascarou a intenção principal: "O aldeamento destes indios, nas condições expostas é um proveito duplo! Chama-os ao gremio social modificando os seus costumes pelo trabalho, e tornando-os garantia contra a aggressão dos selvagens a que me referi."
A proposta e a justificação de Piedade eram indecentes, a valer-se o branco do uso da mão de obra indígena, gratuita, para o 'prestar bons serviços', e garantia contra agressões de outros índios.
A falta de braços "reduz as vantagens da producção e faz recear pelo futuro do paiz" reclamavam os fazendeiros ao Governo da Província que entendia que "O serviço de catechese deve ser mantido em certos lugares com um duplo fim: tornar úteis á sociedade homens que vivem ociosos e garantir a segurança pessoal dos habitantes de lugares como Santa Cruz do Rio Pardo, São Pedro do Turvo, Capella de Campos Novos, Lençóes e outros que, neste ponto, parece que estão fora de comunhão." (RG, U 1131, 1882/1882: 58).
Não era tão simples. O Governo Provincial dependia da Assembleia, da Justiça e, sobretudo do Império, pressionado e visto de perto pelos organismos internacionais.
Relatório do Governo de São Paulo, de 1886 atestava crítica a presença indígena e reafirmava a necessidade de aldeamentos: "Em assumpto de catechese e civilisação dos Indios, infelizmente ainda está tudo por fazer. O Brigadeiro Director Geral dos Indios insiste na conveniencia de serem fundados novos aldeamentos dotados dos necessários meios, em Lençóis, Botucatu e Campos-Novos do Turvo, onde há excellentes terras de cultura e onde, errantes, vagam para cima mais de mil índios Xavantes e Coroados, em sertão de mais de 30 leguas." (RG, BN 1031, 1886/1887: 28).
O célebre matador de índios, Coronel Francisco Sanches de Figueiredo – o Coronel Sancho, por conta própria resolveu acabar com o problema, tomado por motivação pessoal pela morte de dois sobrinhos em um ataque indígena.
Tidei Lima descreve o ocorrido, em 1886, quando "Numerosos grupos chefiados pelo Coronel Francisco Sanches de Figueiredo, partiu de Campos Novos, atravessou o rio do Peixe, seguindo rumo noroeste alcançou as vertentes do rio Feio e pela madrugada aproximou-se da aldeia [dos Caingangues]. Esta era composta de 5 [cinco] linhas de rancho, de uma cerca de 40 [quarenta] metros de comprido, roça de milho calculada em 12 [doze] alqueires, animais domésticos, 500 [quinhentos] índios (...). Pereceram todos os capitães da aldeia (...)." (1979: 146-147 – Notas 118).
Prossegue Tidei Lima que "Mais tarde, o superior dos capuchinhos, Fr. Bernardino de Lavalle, ao se referir ao massacre de 1886 [o acima citado] acrescentaria também a utilização de '1 kg de Strychnina, para extinguir, com um intervalo de 5 a 6 meses', a população de mais duas aldeias Caingangues" e finaliza aquele estudioso, "Nestes horrores teriam perecido, em conseqüência do envenenamento dos suprimentos de água, mais de 1000 [mil] Caingangues." (1979: 146-147 – Notas 119).
O Governo da Província de São Paulo declarou-se incrédulo: "Procurando colher informações seguras sobre tão grave assunto, não obtive, felizmente, confirmação da notícia que aliás parecia à primeira vista inverossímil." (Tidei Lima, 1979: 146-147 – Notas 120).
Pouco depois, "a mesma fonte admitia implicitamente a procedência da denúncia, ao justificar a necessidade das missões religiosas como meio de abrandar o ódio dos nacionais contra os selvagens." (Tidei Lima, 1979: 146-147 – Notas 121).
Tremendo morticínio, dois anos depois foi notícia no 'The Times', com imediata reação brasileira: "Na correspondencia de Londres, que hontem publicamos, vem a noticia de haver o dr. Barão de Penedo, na sua qualidade de enviado extraordinario, e ministro plenipotenciario do Brazil, protestado sem demora contra as duras apreciações que suggerio ao Times supposto envenenamento de grande numero de indigenas em S. José dos Campos Novos, da provincia de S. Paulo." (Correio Paulistano, 22/05/1888: 2, referente matéria publicada no Jornal do Comercio).
A Missão Catequizadora, na localidade de Campos Novos, somente surgiu em maio de 1888, e quatro anos depois se pretendeu um sistema de aldeamento oficial religioso, também para Santa Cruz do Rio Pardo, sem êxito e repelido pela população, afinal não havia índios para capturar e nem a necessidade de trazê-los para aldeamento local. Para o trabalho servil, os fazendeiros interessados sabiam onde buscá-los, já pacificados.
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Capítulo complementar
http://satoprado-ebook.blogspot.com/2013/08/acontecimentos-notaveis.html

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